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Em 'Vício inerente', fracasso da utopia dos anos 60 molda presente!

Paul Thomas Anderson adapta obra do escritor Thomas Pynchon.
Joaquin Phoenix se destaca no papel do protagonista.
É preciso um cineasta com uma boa dose de coragem e ambição e outro tanto de autoconfiança para levar uma obra do escritor norte-americano Thomas Pynchon, cuja carreira literária conta com mais de meio século e oito romances, para o cinema.
Paul Thomas Anderson, cuja filmografia mostra coragem, ambição e autoconfiança suficientes para lidar com o “inadaptável”, resolveu se arriscar na primeira adaptação de uma obra do escritor, mas para isso espertamente escolheu um livro “menor”, “Vicio Inerente”, de 2009, um neonoir psicodélico e lisérgico, uma espécie de Raymond Chandler com ressaca dos anos 1960.
O filme, ao mesmo tempo fiel e subversivo em relação à obra original, é uma comédia, ainda que bastante melancólica que, a partir do século 21 olha para o fracasso dos ideais e utopias dos anos 1960.
Situada no começo da década seguinte – e isso tem muito a dizer –, a trama é protagonizada por hippies cuja data de validade está vencida, no momento em que o movimento deixou de ser legal (não no sentido de “fora da lei”), e se torna injustamente esvaziado e motivo de piada.
Larry "Doc" Sportello, um detetive particular e protagonista, só é mais um tipo estranho na galeria de tipos estranhos do ator Joaquin Phoenix, aí também incluindo-se o fanático religioso desprovido de juízo do filme anterior de Anderson, “O Mestre”.
A trama é complexa e intrincada, herança do romance, mas talvez não tenha tanta importância em si, o que importa mais é como o cineasta articula personagens e situações.
Começa com Doc sendo procurado por Shasta (Katherine Waterston), ex-namorada que confessa estar sendo pressionada pela esposa (Serena Scott Thomas) de seu amante Michael Wolfmann (Eric Roberts) para participar de um plano para dar um fim no sujeito e apoderar-se de sua fortuna. A jovem, no entanto, acaba desaparecendo.
Doc também é contratado por Hope Harlingen (Jena Malone), ex-viciada, agora conselheira de jovens drogados, que o procura para encontrar seu marido desaparecido, Coy Harlingen (Owen Wilson). Trata-se de um ex-comunista que se tornou informante do Programa de Contrainteligência – cujo objetivo, entre outros, era desmoralizar os grupos de esquerda.
O que une os dois casos é uma corporação chamada “Caninos de Ouro”, que, sob o disfarce de uma associação de dentistas, trafica drogas, além de manter uma espécie de sanatório, onde pessoas com problemas são “curadas” – como por exemplo, o ator Burke Stodger (Jack Kelly), ex-comunista que se torna um reacionário orgulhoso.
Pynchon e Anderson situam a narrativa nos anos 1970, mas, no fundo, falam mesmo do nosso presente, marcado por uma ascensão neoconservadora – que parece estar se tornando um fenômeno mundial. Também colocam como pano de fundo a emergência do neoliberalismo, ocorrida por volta da época da ação do filme, cujas privatizações e especulações resultariam na crise econômica de 2008.
A cultura hippie, por sua vez, teria como o seu “vício inerente” (algo estrutural do qual não se pode escapar, “como o risco do vidro quebrar ou do chocolate derreter”, explica uma personagem) os elementos que, mais tarde, a destruiriam, resultando na virada yuppie dos anos 80.
“Vício Inerente” é o passo mais lógico da carreira recente de Paul Thomas Anderson, que estabelece uma ordem cronológica e histórica fazendo a investigação do fracasso do sonho americano.
Em “Sangue Negro”, de 2007, a intersecção entre o fundamentalismo religioso e o capitalismo gera um monstro coberto de petróleo, que também reflete a expansão territorial do país no século 19 (e, claro, ecoou no 20, com as invasões no Oriente Médio).
“O Mestre”, de 2012, procura um sentido no vazio da vida pós-Segunda Guerra, quando os subúrbios povoados por famílias altamente consumistas tornam-se um modelo hegemônico e pauta de tudo o que vem depois.
Esta obra mais recente, então, investiga o que veio depois, que também traz em si a marca da pós-modernidade. A ausência de historicidade reflete-se no senso de desorientação dos personagens – e mesmo da narrativa, que traduz este dado na forma, em suas cenas que nem sempre se encaixam ou fazem muito sentido.
Os personagens – tão embebidos em seu escapismo delirante induzido por drogas – nunca vão se dar conta da espiral de horror e da falta de sentido em que estão presos. Uma dessas figuras – que pode existir ou ser apenas o delírio de Doc – é Sortilége (Joanna Newsom), que serve como uma espécie de narradora, amálgama que une os acontecimentos, cobre as lacunas.
Tendo como parâmetro o arco que o cineasta faz da investigação da ascensão e superação de ideologias nos EUA, “Boogie Nights – Prazer Sem Limite”, seu segundo longa, de 1997, situa a ação exatamente na virada dos anos de 1970 para 1980, tendo como fio condutor a indústria pornográfica da Califórnia.
Um dos momentos mais marcantes daquele longa é a última noite de 1979, quando a euforia da década que termina dá lugar à melancolia que irá marcar a seguinte, sob a presidência de Ronald Reagan. Escrevendo e dirigindo com a vantagem do distanciamento histórico, Anderson simboliza a ascensão neoliberal pela rápida diminuição dos cinemas pornográficos com o fortalecimento do videocassete.
É, finalmente, a cristalização do moralismo de fachada, que reverbera até hoje.
Anderson, sem dúvida, é um dos maiores cineastas norte-americanos da atualidade. Se é que esse tipo de classificação ainda conta, ele é um dos poucos a fazer cinema autoral nos EUA, e também capaz de tecer uma crítica à cultura do país e àquilo que a corrói dia após dia.