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.:♪: Trechos do livro Furacão Elis :♪:.

Leia o primeiro capítulo

Num boteco de meio de quarteirão de São Paulo, bairro classe média, dona Ercy Carvalho Costa atende fregueses até às oito da noite. Há quem goste de sentar no balcão e comer o almoço de dona Ercy, famoso nas redondezas. Dona Ercy caminha a pé pra casa, a meio quarteirão dali. Mora sozinha aos sessenta e três anos desde que morreu o marido, Romeu Costa, em dezembro de 84. Sempre que fala da filha Elis, ela chora. Mistura ódio e amor numa velocidade quase tão rápida quanto a que costumava ter sua própria filha e me diz, chorando e apertando os dentes:

- Eu não perdôo.

Memória fabulosa para uma mulher que parece encontrar no instinto de sobrevivência a força para continuar trabalhando no bar e pagar o aluguel. Talvez enlouquecesse também dentro de casa, sem nada pra fazer. Quando dona Ercy enxuga as lágrimas que correm por debaixo dos óculos grossos, me dá uma sensação de paralisia de afeto. Parece impossível acariciá-la e confortá-la. Uma altivez gaúcha envolve essa rocha matriarcal, a líder implacável da infância e adolescência de Elis Regina.

Dona Ercy, filha de imigrantes portugueses, cristãos-novos, donos de mercearia no extremo sul do Brasil. Encontrou um Romeu brasileiro, filho de brasileiros, com cara de índio, caladão, emprego seguro numa fábrica de vidros. Foram morar no Bairro de Navegantes em Porto Alegre, numa casa de madeira, quintal de terra batida.

A filha do casal nasceu estrábica e deve o nome Elis a uma amiga de dona Ercy. Regina vem de uma exigência legal. Na burocracia da época, as crian­ças não podiam ser batizadas com nomes que tanto serviam para meninos como para meninas. já preven­do que não pudesse batizar sua menina apenas Elis, dona Ercy mandou um Regina de reserva.

Elis Regina Carvalho Costa, 17 de março de 1945, parto normal feito pela parteira Conceição e pela enfermeira Marlene no Hospital Beneficência Portuguesa, Porto Alegre. Um sábado, às três e dez da tarde.

Primeira filha, primeira neta de uma família numerosa. De duas famílias numerosas. Tinha uma saúde de ferro, e a mãe não se lembra de ter perdido uma noite de sono - Elis dormia pontualmente às oito da noite. Sempre no escuro, tudo apagado.

Dona Ercy transformou a primogênita dos Car­valho Costa numa bonequinha estrábica. De pequena já se previa que ela não iria muito longe em altura. Elis andava sempre bem arrumadinha, sempre bem vestida, laçarotes na cabeça e óculos de grau desde os quatro anos. Nas recordações mais remotas de sua mãe, era uma criança obediente. Gostava de brincar sozinha, costumava andar pelo quintal com uma bol­sa de palha, falando sozinha.

Até perder o emprego de chefe do almoxari­fado da Companhia Sulbrasileira de Vidros, Romeu Costa era um homem sensível. Gostava de ler Hemingway e ouvir Chico Alves e Carlos Gardel. Antes de se casar, ganhou o segundo lugar num pro­grama de calouros e, de vez em quando, num rom­pante, se vestia com os longos camisolões de dona Ercy e saía cantando e bailando pela casa. Devia ter uma forte ascendência na pequena cabeça de Elis, porque durante anos ela acreditou que ele era de fato um bailarino. Ficou decepcionada.

Na casa dos Carvalho Costa, o rádio tocava a música do Brasil, pela Nacional do Rio, e a música da Argentina, pelas ondas da Rádio Belgrano. Aos domingos, quando se reunia toda na casa da avó Ana, mãe de dona Ercy, a família costumava fazer barulho na mesa. Cantar alto, gargalhar. A pequena Elis can­tava Adiós pampa mia do começo ao fim, sem desa­finar, sem errar a letra. E foi num desses domingos que a avó Ana teve um rompante:

- Por que não levam essa guria ao Clube do Guri?

Clube do Guri, programa infantil transmitido pela Rádio Farroupilha, sempre aos domingos. Elis tinha sete anos quando enfrentou seu primeiro mi­crofone. Foi um choque para a menina tímida, que costumava falar sozinha, encarar uma platéia estra­nha de auditório de rádio. O diretor do programa, Ary Rego, pediu que ela falasse alguma coisa. Nada, Elis ficou muda. Pediu que cantasse. Silêncio no ar. Dona Ercy, já nervosíssima, ajudava a pressionar Elis: "Canta, minha filha". Ela, nada. Limitava-se a roer as unhas encobertas pelas luvas brancas. Vol­tou para casa calada, com dona Ercy nas orelhas. "Isso não é papel que se faça." Cinco anos se passa­ram até Elis Regina ter coragem de pedir uma nova chance.

Quando entrou para a escola primária, já sabia ler, escrever e fazer contas. Orgulhosa de sua meni­na, dona Ercy falava com ela como se fosse uma moça, sem dengos infantis, sem erros de português. E, quando Elis chegava em casa com o boletim cheio de notas altas, também ouvia em bom português: "Não fez mais do que a obrigação". Na vida, a gente tem que lutar. A família não era mesmo chegada a paparicos. Naquela casa gaúcha pegar no colo só quando estivesse com sono e olhe lá. Assim foi criada Elis e, também, seu mano Rogério, o único irmão, cinco anos mais moço.

Em 1952, a família deixou o Bairro de Nave­gantes. Como industriário, seu Romeu tinha direito a ocupar um apartamento na vila do IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industríários) -prédios e prédios de apartamentos construídos em dois andares, na horizontal. Era uma vila operária, mas ocupava local privilegiado em Porto Alegre. Uma bela área verde, muitas praças e um campo de futebol. O apartamento térreo onde se instalaram tinha três lances de quintal, uma figueira na porta e o campo de futebol bem em frente. Seu Romeu cos­tumava dizer que queria um cantinho de terra pra pisar e pra plantar, muito embora nunca tenha plan­tado nada.

Foi morando nesse apartamento que a família sofreu o primeiro golpe. A Sulbrasileira de Vidros faliu e seu Romeu. perdeu o rumo. Rogério, já com cinco ou seis anos, lembra-se de tempos bicudos. Dona Ercy era obrigada a raspar os cofrinhos das crianças. Seu Romeu tomou uma decisão: não seria mais empregado de ninguém. Dito e feito. Passou o resto da vida aventurando-se em empregos variados - foi representante comercial, caixeiro viajante, dono de açougue, feirante. À medida que o tempo passava, mais pessimista ele ficava. Dizia: "Se eu abrir uma fábrica de chapéus, no dia seguinte as pes­soas começam a nascer sem cabeça".

Aos nove anos, Elis foi aprender piano com a professora Waleska, uma vizinha da vila do IAPI. Es­tudou dois anos. Aprendia rápido demais, tão rápido que, de repente, se viu diante do dilema: ou com­prava um piano ou parava de estudar. Elis Regina começou a cantar porque não podia comprar um piano.

Diálogo entre mãe e filha na Porto Alegre de 1956:

- Mãe, tu me leva ao Clube do Guri?
- 0 que é que tu vai fazer lá?
- Vou cantar.
- Cantar? Ta louca, pensa que tenho tempo pra perder?

No domingo seguinte, dona Ercy pegou Elis e mais duas amigas e lá se foram todas para a Rádio Farroupilha. Mesmo não conseguindo se inscrever nesse domingo, Elis voltou na semana seguinte e cantou. Por mais que se esforce, dona Ercy não con­segue lembrar qual foi a música de estréia de Elis. Sabe que era do repertório de Ângela Maria e não confirma a versão contada por Elis, anos mais tarde, de que cantou Lábios de mel. Foi uma sensação no Clube do Guri. Elis, de cara, desbancou' a favorita do auditório.

Cinco anos depois do desastre da primeira ten­tativa, Elis dava o troco. 0 primeiro de uma série. De uma longa série.

Cantar no Clube do Guri virou hábito para Elis. Dos onze aos treze anos e meio, ela cantou quase todos os domingos. Virou até secretária do apresen­tador Ary Rego. Na rádio, já não roía as unhas com tanta fúria, mas fazia coisa pior, muito pior. Soltava sangue pelo nariz. Uma coisa de espantar. Dona Ercy não se esquece: um dos vestidos de domingo era branco, com poazinho azul-marinho, gola redonda azul e uma gravata grande caindo pela saia rodada. Para essas sérias brincadeiras dominicais, dona Ercy passava 'madrugadas em cima da máquina de costura. Nos bastidores, o nervoso foi tanto que o nariz jor­rou quantidades alarmantes de sangue. O vestido ficou manchado, e Elis entrou em cena disfarçando, enrolando a saia na frente. Tinha acontecido o que viria a acontecer inúmeras outras vezes. Sempre na rádio. Só na hora de entrar no palco. Até o m da vida, tímida e insegura, Elis ficava insuportável antes de entrar em cena. A mesma insegurança, o mesmo medo de errar, a mesma fobia de não ser perfeita.

Aos treze anos e meio, Elis era a garota sensa­ção de Porto Alegre. Na capital do Brasil, Rio de janeiro, já se conhecia João Gilberto e a bossa-nova. Rapazes e moças se fechavam em apartamentos para cantar e fazer música. Os jovens não queriam mais ouvir o que se tinha pra ouvir. Queriam algo dife­rente, mais sofisticado do que os sambas-canções de então. Queriam uma mistura do jeito cool do jazz com o samba quente do Brasil. A quilômetros do Rio, na quase provinciana Porto Alegre, Elis Regina cantava sem sotaque os sucessos estrangeiros que, aprendia ouvindo os discos da rádio.

Um pouco crescidinha e com sucesso demais para o Clube do Guri, Elis deixou a Farroupilha. E assinou seu primeiro contrato profissional com a Rá­dio Gaúcha. Passou a cantar por um cachê de cin­qüenta cruzeiros por mês, no programa Maurício Sobrinho (Mauricio Sirotsky, hoje dono da Rede Brasil Sul de Comunicação, que engloba jornais e emissoras de rádio e tevê).

Só pôde assinar esse contrato porque cumpriu as regras do jogo impostas por dona Ercy: Elis só podia cantar se tirasse boas notas no colégio. Mais tarde, já famosa, Elis resumiu o drama para o amigo José Eduardo Homem de Mello, o Zuza:

- Era um drama: eu tinha que estudar e tirar notas excepcionais para poder cantar, entende? Eu tinha que estudar mesmo pra valer, senão mamãe não me deixava cantar e eu já estava começando a gostar.

Hoje, dona Ercy admite que Elis possa ter en­tendido sua exigência como uma imposição, mas argu­menta a seu favor com um pressentimento de mãe: "Cantar, um dia você pára, minha filha". Ercy pen­sava que Elis podia se formar professora e, quem sabe, cursar a faculdade.

O dinheiro de Elis veio a calhar, mas criou um conflito familiar que viria a se agravar com o passar dos anos e do volume de dinheiro arrecadado. Elis Regina ainda não tinha catorze anos e já ganhava mais que o pai. 0 mano Rogério se lembra como mudou a vida da família:

- Elis começou a se impor porque pintava com a grana para solucionar os problemas. Ela segu­rava numa boa, nunca cobrou.

Nessa época, porque mais tarde ela Viria a co­brar, como bem lembrou Rogério. E, nessa época também, dona Ercy não tinha apenas os dois filhos. Para ajudar um irmão, assumiu a responsabilidade de criar Rosângela, sua sobrinha, ainda um bebê. Rosângela ficaria com a família Carvalho Costa até completar catorze anos.

Com o primeiro salário, Elis comprou três coi­sas para o seu quarto. Um sofá-cama, um tapete e uma vitrola hi-fi. Comprou tudo de segunda mão de uma tia rica da família, a tia Aida, madrinha de Ro­gério e a primeira a despertar o gigante adormecido em Elis. Um dia, quando a tia quis interferir na ar­rumação do quarto, Elis arrepiou: "É meu".

Dona Ercy e Elis resolveram que o ginásio de­veria ser feito no Instituto de Educação, tradicional colégio de Porto Alegre, uma escola pública. É um prédio imponente, estilo neoclássico, em frente ao Parque Farroupilha, a maior área verde de Porto Alegre.

Casto Instituto de Educação. Casta Porto Ale­gre. Maldita profissão de artista. Um dia, Elis chega em casa e diz à mãe:

- A professora me chamou de mau elemento.

Dona Ercy se queimou. Foi ao Instituto de Educação, pediu pra falar com a diretora. Quando soube que não podia ser atendida, virou bicho. "Sabe o que ela disse pra mim? Que Elis não podia estudar porque era cantora. Chamou Elis de boi sonso." E soltou:

- Se vocês estão pensando que minha filha não tem ninguém que olhe por ela, vocês estão en­ganados. E outra coisa, eu arraso esse colégio, eu tenho o rádio, o jornal, todos do meu lado.

"Eu disse: 'Olha, minha senhora, eu não vim aqui discutir a minha vida particular. Eu vim tratar de um problema da escola. Quero saber por que ela é mau-elemento. Quando virei as costas ela disse: ‘Já vai tarde'. Virei bicho de novo."

Resultado da bronca. a professora de francês foi transferida e Elis terminou o ginásio em paz. Já no clássico, ela não conseguiu conciliar o estudo com o trabalho e sofreu um esgotamento nervoso. "Ela se deu mal no latim", lembra dona Ercy. No meio desse ano, Elis transferiu-se, como queria de início toda a família, para o curso normal, que abandonou depois do segundo ano.

Elis tinha quinze anos quando dona Ercy per­mitiu que usasse sapatos altos e pintasse as unhas. Foi também quando viajou de Porto Alegre ao Rio para gravar o primeiro LP, "Viva a Brotolândia". A repercussão foi apenas local. Eu, que tinha na época dez anos, me lembro de ouvi-lo na casa de uma prima mais velha, em São Paulo. Muito tempo depois do sucesso de Elis nos festivais é que associei uma à outra. Com a bossa-nova surgindo, como é que eu poderia me ligar num repertório cheio de versões de rocks calminhos e sambas-canções, a não ser pela voz limpa da cantora?

Os três primeiros LPS foram assim, e Porto Alegre não tinha mais nada a oferecer a Elis, já cami­nhando pela noite como crooner do conjunto Flam­boyant, à beira de botar a perna no mundo.

Decididamente, cantar ganhava espaço na vida da normalista. Sobre namorados, jamais conversava com dona Ercy. O primeiro foi um homem ligado à música, como seriam praticamente todos os que es­colheu ao longo da vida. O nome dele era Marcos Amaral, locutor de rádio. O mano Rogério tem va­gas recordações do disc-jóquei. Lembra de ir com a irmã para a rádio esperá-lo, e depois de acompanhar os dois até a pensão onde ele morava.

Sebastião Schlininger, o segundo, era bem mais velho do que Elis, uns cinco, seis anos. Era descen­dente de alemães, mas moreno, brizolista, um' fun­cionário petebista da Caixa Econômica. ' 0 que so­brou deste caso de amor juvenil foi uma briga deci­siva: Elis terminou o namoro e foi embora para o Rio de Janeiro, mas nas primeiras entrevistas do sucesso falava em um grande amor secreto que havia deixado em Porto Alegre. Fala-se também que a fa­mília de Sebastião e o próprio se opunham à carreira da cantora.

Em março de 1964, depois de completar dezoi­to anos, Elis e seu Romeu embarcaram definitiva­mente para o Rio de Janeiro. Foram tentar a sorte. Elis contava com a promessa do produtor de discos Armando Pitigliani de contratá-la para a Philips, assim que ela rompesse o contrato que ainda manti­nha com a CBS. Elis chegou ao Rio com programas de televisão em vista e uma efervescência na noite carioca. O Beco das Garrafas, a bossa-nova cantando um Brasil de amor e flor.

Dona Ercy preparou a mala dos dois. Seu Ro­meu partia com uma carta de recomendação do velho PTB na esperança de desembarcar empregado no Rio de Janeiro. Doce ilusão, a revolução de 64 afundou o PTB.

Dona Ercy ficou em Porto Alegre cuidando de Rogério e de Rosângela. Tinha esperanças. Não podia imaginar que um ano mais tarde tudo estaria mu­dado. 0 sonho de sucesso aconteceria, sim, mas sua menina nunca mais seria a mesma. Nem pequena, nem dócil.

Ainda que seja fácil compreender que o uni­verso de dona Ercy não seja capaz de entender a am­plitude de vôo de sua própria filha; ainda que seja claro entender que a rigidez da criação de Elis a tenha levado a estúpidas crises de insegurança; ainda assim, me corta o coração quando escuto dona Ercy dizer hoje:

- Perdi minha filha aos dezenove anos.