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• As palavras de Clarice •

Uma pequena composição dos fragmentos selecionados e postados neste espaço.
Espaço em constante construção. Tal qual Clarice...
OBS: É preciso ler Clarice por inteira para entender suas partes.

Em uma outra vida que tive, aos 15 anos, entrei numa livraria,
que me pareceu o mundo que gostaria de morar. De repente,
um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo,
presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu!
Só depois vim a saber que a autora era considerada um dos melhores
escritores de sua época: Katherine Mansfield.


Emocionado eu penso: esses livros são eu.


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••• PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM •••
•Porque ela nascera para o essencial, para viver ou morrer. E o intermediário era-lhe o sofrimento. Sua existência foi tão completa e tão ligada à verdade que provavelmente na hora de entregar-se e findar, teria pensado, se tivesse o hábito de pensar: eu nunca fui. Também não se sabe o que se fez dela. A uma vida tão bela deve ter-se seguido uma morte bela também. Certamente hoje é grãos de terra. Olha para cima, para o céu, durante todo o tempo. Às vezes chove, ela fica cheia e redonda nos
seus grãos. Depois vai secando com o estio e qualquer vento a dispersa. Ela é eterna agora.(...)

•"Deus meu eu vos espero, Deus, vinde a mim, Deus, brotai no meu peito. Eu não sou nada, e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas, e eu continuo a sofrer - afinal o fio sobre a parede escura -. Deus, vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e Deus, porque não existes dentro de mim? Porque me fizeste separada de ti? Deus, vinde a mim, eu não sou nada, eu sou menos que o pó e eu te espero todos os dias e todas as noites. Ajudai-me, eu só tenho uma vida e essa vida escorre pelos meus dedos e encaminha-se para a morte serenamente e eu nada posso fazer e apenas assisto ao meu esgotamento em cada minuto que passa. Sou só no mundo, quem me quer não me conhece, quem me conhece, me teme e eu sou pequena e pobre. Não saberei que existi daqui a poucos anos. O que me resta para viver é pouco, e o que me resta para viver, no entanto, continuará intocado e inútil. Porque não te apiedas de mim, que não sou nada? Dai-me o que preciso. Deus, dai-me o que preciso, e não sei o que seja, minha desolação é funda como um poço e eu não me engano diante de mim e das pessoas. Vinde a mim na desgraça e a desgraça é hoje, e a desgraça é sempre. Beijo teus pés e o pó dos teus pés. Quero me dissolver em lágrimas. Das profundezas chamo por vós, vinde em meu auxílio que eu não tenho pecados. Das profundezas chamo por vós. E nada responde e meu desespero é seco como as areias do deserto e minha perplexidade me sufoca, humilha-me, Deus, esse orgulho de viver me amordaça - eu não sou nada -. Das profundezas chamo por vós. Das profundezas chamo por vós. Das profundezas chamo por vós. Das profundezas chamo por vós.

Não, não, nenhum Deus, eu quero estar só. E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente, seguramente, inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento. Eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro. Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante; sempre fundido, porque então viverei, só então serei maior que na infância, serei brutal e mal feita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas. Ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a compreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá o meu caminho até a morte sem medo de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo."

•"Deus, vinde a mim não para me salvar, a salvação estaria em mim, mas para abafar-me com tua mão pesada..."

•"Erguia-se para uma nova manhã, docemente viva. E sua felicidade era pura como o reflexo do sol na água"

•"Tudo o que poderia existir, já existe. Nada mais pode ser criado senão revelado."

•"É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo."



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••• UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES •••
•" O caminho lento aumenta sua coragem secreta"

•"Então o que chamava de morte a atraía tanto que só poderia chamar de valoroso o modo como, por solidariedade e pena dos outros, ainda estava presa ao que chamava de vida."

"sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro — pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver."

•"Aquilo que fosse do tamanho da cabeça de um alfinete, não transbordava nenhuma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete: tudo o que existia era de uma grande perfeição"

•"Haviam-se passado momentos ou três mil anos? Momentos pelo relógio em que se divide o tempo, três mil anos pelo que Lóri sentiu quando com pesada angústia, toda vestida e pintada, chegou à janela. Era uma velha de quatro milênios."

•"Era cruel o que fazia consigo própria: aproveitar que estava em carne viva para se conhecer melhor, já que a ferida estava aberta"

•"Ah! gritou-se muda de repente, que o Deus me ajude a conseguir o impossível, só o impossível me importa!"

•"Por mais intransmissível que fossem os humanos, eles sempre tentavam se comunicar através de gestos, de gaguejos, de palavras mal ditas e malditas"

•"— Bem tranqüila, Lóri, vá bem tranqüila. Mas cuidado. É melhor não falar, não me dizer. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio."

•"A máscara a incomodava, ela sabia ainda por cima que era mais bonita sem pintura. Mas sem pintura seria a nudez da alma. E ela ainda não podia se arriscar nem se dar a esse luxo."

•"— Teus olhos, disse ele mudando inteiramente de tom, são confusos mas tua boca tem a paixão que existe em você e de que você tem medo. Teu rosto, Lóri, tem um mistério de esfinge: decifra-me ou te devoro.
Ela se surpreendeu de que também ele tivesse notado o que ela via de si mesma no espelho.
— Meu mistério é simples: eu não sei como estar viva.
— É que você só sabe, ou só sabia, estar viva através da dor."

•"Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me batendo dentro do peito."

•"A dor voltara quase fisicamente, e ela pensou em rezar. Mas logo descobriu que não queria falar com o Deus. Talvez nunca mais. Lembrou-se de que uma vez, de férias numa fazenda, deitara-se de bruços numa clareira do matagal, encostando o peito na terra, os membros na terra, só o rosto virado para o chão era protegido por um dos braços dobrados.
A essa lembrança, que visualizou de novo, pensou que de agora em diante era só isso o que ela queria do Deus: encostar o peito nele e não dizer uma palavra




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••• A HORA DA ESTRELA •••
•"Estava contente. Mas como doía.

•"Pois era muito impressionável e acreditava em tudo o que existia e no que não existia também. Mas não sabia enfrentar a realidade. Para ela a realidade era demais para ser acreditada. Aliás a palavra "realidade" não lhe dizia nada. Nem a mim, por Deus"

•"não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova da existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar. Acreditar chorando."

•"As coisas estavam de algum modo tão boas que podiam se tornar ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer."

•!- Por que é que você me pede tanta aspirina?
-É para eu não me doer.
- Como é que é? Hem? Você se dói?
-Eu me dôo o tempo todo.
-Aonde?
-Dentro, não sei explicar."

"Tinha o olhar de quem tem uma asa ferida.

"Porque há o direito ao grito. Então eu grito."

"Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava!."

•"Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar pra mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre a novidade que é escrever eu me morreria simbolicamente todos os dias."

•"A eternidade é o estado das coisas neste momento."

•"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever



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•••A PAIXÃO SEGUNDO G.H •••
•"A paixão segundo G.H
"É como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável.
Sei que é somente com duas pernas é que posso andar. Mas, a ausência inútil da terceira perna me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável em mim mesma, e sem sequer precisar me procurar. Estou desorganizada porque perdi o que não precisava?
Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Havia aquela coisa latejante a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa."
•"Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação."

•"Minhas antigas construções haviam consistido em continuamente tentar transformar o atonal em tonal, em dividir o infinito numa série de finitos, e sem perceber que finito não é quantidade, é qualidade. E meu grande desconforto nisso tudo tinha sido o de sentir que, por mais longa que fosse a série de finitos, ela não esgotava a qualidade residual do infinito".

•"Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando."

•"Nem todos chegam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a altura de poder cair."

•"Com Deus a gente também pode abrir caminho pela violência. Ele mesmo quando precisa mais especialmente de um de nós, Ele nos escolhe e nos violenta."



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•••UM SOPRO DE VIDA•••
•"Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensa"

•"Eu nunca fui livre na minha vida inteira. Por que dentro eu sempre me persegui. Eu me tornei intolerável para mim mesma."

•"Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento da evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta.
Então - para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa - eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo.

•"Ser um ser permissível a si mesmo é a glória de existir."

•"Oh Deus, eu que faço concorrência a mim mesma. Me detesto. Felizmente os outros gostam de mim. É uma tranqüilidade."

•"O cacto é cheio de raiva com os dedos todos retorcidos e é impossível acarinhá-lo. Ele te odeia em cada espinho espetado porque dói-lhe no corpo esse mesmo espinho cuja primeira espetada foi na sua própria grossa carne. Mas pode-se cortá-lo em pedaços e chupar-lhe a áspera seiva: leite de mãe severa."



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•••ÁGUA VIVA•••
•"E eis que sinto que em breve nos separaremos. Minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora eu sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama. Quanto a mim, assumo a minha solidão. Que às vezes se extasia como diante de fogos de artifício. Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor. E a dor, silêncio. Guardo o seu nome em segredo. Preciso de segredos para viver."

•"A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas aéreas piruetas - escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio."

•"Mas o meu principal está sempre escondido. Sou implícita. E quando vou me explicitar perco a úmida intimidade."

•"Expresso a mim e a ti com os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgíaca beleza confusa."

•"Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e outros nascem — fixo os instantes de metamorfose e é de terrível beleza a sua sequência e concomitância."


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•••PARA NÃO ESQUECER••• (crônicas)
Por não estarem distraídos
•"Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."


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•••FELICIDADE CLANDESTINA•••(contos)
Felicidade Clandestina
•"Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra."

•"Os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

•"Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante."

Encarnação involuntária
•"Inútil: toda a minha força está sendo usada para eu conseguir ser frágil"

Restos de carnaval
•"Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz"

•"Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco"

•"Engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola"

•"Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre contos de fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencatada: não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina."

Os desastres de Sofia
•"e ter nascido era cheio de erros a corrigir."

O ovo e a galinha
"Poucos querem o amor, porque amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há o que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma excessão honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente."


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•••LAÇOS DE FAMÍLIA•••(contos)
A menor mulher do mundo
•"A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de casstigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve horror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade.